quarta-feira, 4 de maio de 2011

Justiça ou Injustiça?

“Alice no País das Maravilhas” é uma obra infantil aos olhos de vários leitores, no entanto as entrelinhas são a chave fundamental aquando a leitura da mesma. É uma história encantadora sim, repleta de fantasia e onde tudo é aparentemente irreal e muito distante do mundo que todos conhecemos. Mas não passa disso mesmo, aparência. Ao longo de praticamente toda a obra são visíveis inúmeros casos em que o autor demonstra situações paralelas ao mundo conhecido, não só pelo processo de crescimento em que a Alice se encontra (a adolescência), mas principalmente pela ideia de justiça. Justiça essa que é apresentada como sendo o contrário, daí ser entendida como uma critica implícita ao modo como era exercida na época. É então uma acção praticada por alguém mais poderoso a nível físico, e sempre sob alguém mais frágil, sem hipótese de defesa.
De toda a obra podemos retirar vários exemplos de injustiça, quer em situações de abuso de poder, quer em situações em que o mais forte se apodera do mais fraco, ou o maior do mais pequeno.
No primeiro exemplo é retirada a ideia de que o mais forte se apodera do mais fraco e está presente no seguinte excerto:
“Disse a Fúria ao rato, que encontrou no quintal: Vamos ao tribunal para te condenar por injúria capital. Não podes negar, temos de te julgar porque a manhã é bela, e tenho muito vagar. Disse o rato pr’á cadela: Nenhum auto resultaria de tanta balela; sem jurado nem juiz, de nada te serviria. Serei juiz e jurada, disse a Fúria endiabrada, pois era ideia dela comê-lo de cabidela ou senão caldeirada.”
Esta passagem reforça a ideia de que o julgamento não é efectuado com direito a defesa, pois o destino já está traçado antes de qualquer palavra que possa ser mencionada em favor do acusado. Neste poema, Fúria, uma cadela, irá julgar o rato por “injúria capital” sendo juiz e jurada o que demonstra o poder absoluto e totalitário ao nível do julgamento. O rato sofre bastante, pois desde sempre soube que o seu destino estava já traçado, o que demonstra o carácter tortuoso da justiça.
Para além da lei do mais forte, outros factores reforçam a presença de situações injustas, tais como os sucessivos abusos de poder tomados pela “Rainha de Copas”. A rainha é então metaforicamente alguém que se aproveita do cargo que tem, para se sobrepor a qualquer um, seja para os utilizar como escravos, para os tirar do seu caminho quando tentam travá-la ou até porque simplesmente a sua presença a enraivece.
“Podiam dizer-me, por favor, disse Alice (…) por que é que estão a pintar essas rosas? (…) – Bem, sucede o seguinte, Menina, esta aqui devia ter sido uma roseira de rosas vermelhas, mas por engano plantámos uma de rosas brancas; e, se a Rainha descobre, manda-nos cortar as cabeças, já se sabe. (…) Por este excerto podemos desde já concluir que as cartas que não são figuras (neste caso são jardineiros) são inferiorizadas, de tal modo que delas se apodera um sentimento medronho perante as ordens dadas por alguém supremo. Após a exposição dos seus medos, vem o pior episódio para os jardineiros (…) “Bem vejo! – bradou a Rainha, que entretanto estivera a examinar as rosas. – Cortem-lhes as cabeças!” Daqui concluímos então que falhar é palavra proibida na mente da rainha, sendo que quem o fizer sujeita-se ao pior castigo, um ponto final no caminho percorrido. Reforça então ideia de que é assumido um papel extremamente duro e demasiado pesado por parte da personagem, não permitindo sequer a segunda oportunidade, devido ao excesso de poder. Tudo isto para que o povo adquira o medo, e mais tarde não possua coragem para qualquer afronta. Seja qual for a situação o veredicto da rainha é sempre o mesmo: “Cortem-lhe a cabeça!”, algo que chega a acontecer a Alice por não responder a uma pergunta por ela colocada. “E quem são estes? – perguntou a rainha (…) Como hei-de eu saber? – disse Alice (…) A Rainha ficou vermelha de raiva e, (…) começou a gritar: - Cortem-lhe a cabeça!” Como já tinha sido mencionado, a rainha volta a apoderar-se do poder que tem, mas desta vez com um final distinto. E porquê? Alice não deixou que o medo a envolve-se e fez-lhe frente, deixando a rainha perplexa, acabando por perceber que nem sempre consegue o que quer, daí Alice ir suscitar um certo desconforto para a rainha, daí mais à frente o rei inventar uma regra para que esta seja expulsa do tribunal. Esta atitude de Alice demonstra a luta pela libertação de regras demasiado severas. Depois de inúmeras situações de abuso de poder e como se não bastasse, Alice fica boquiaberta, quando se depara com tamanha falta de remorso. “Alice achou que nunca vira um campo de cróquete tão esquisito em toda a sua vida; era todo aos altos e baixos, as bolas de cróquete eram ouriços-cacheiros vivos, os tacos eram flamingos, e os soldados tinham de dobrar-se e ficar de gatas, para fazerem de balizas.” Algo nunca visto e, mais uma vez, é provado que nas mãos da rainha qualquer um é escravo. Ela quer jogar, e quando há falta de campo os outros que o façam, quer se aleijem ou não e o mais estranho é a ausência de remorso que nela incide. No entanto, Alice nada fez, aproveitando-se de todos os animais para também jogar o que demonstra que afinal também permite que o medo dela se apodere. Igualdade não há e respeito muito menos, é isso que provam todas as atitudes da rainha aqui apresentadas.
“Minha querida, gostava que tirasses dali aquele gato!” E nesta altura, conhecendo o carácter abusivo da rainha, já é previsível a sua reacção: “Cortem-lhe a cabeça!” Era a única estratégia conhecida pela mesma para tratar qualquer problema, fosse ele grave ou insignificante. E o Rei, que apenas se assemelha à sua esposa, nada faz, senão colaborar na decapitação o que demonstra que a maldade e tirania reina toda a comunidade governante e não apenas este ou aquele. Com isto, adquirimos mais uma critica implícita à justiça da época que Lewis Caroll quis introduzir por várias vezes na sua obra.
Se a falsidade e injustiça eram até aqui os principais problemas, agora junto mais dois, a desorganização e falta de conhecimento por parte de alguém que deve dar o exemplo e a ausência de um tribunal com o seu verdadeiro significado. O rei, alguém que concretamente deve ser justo e imparcial em qualquer situação, demonstra em pelo menos três situações que em nada se comporta de acordo com o cargo que lhe é conferido. É então aqui apresentado como sendo infundado nas críticas que faz, possuir falta de conhecimentos para poder exercer o seu cargo e ainda abusador de poder quando tenta enganar tudo e todos com leis por si inventadas. Na passagem “(…) Isso é muito relevante – disse o rei(…) o coelho interrompeu: – Irrelevante quer vossa majestade dizer (…) – Irrelevante, evidentemente, era o que eu queria dizer (…) apressou-se o rei a corrigir”, é explicito o lado pouco sabedor do rei no que diz respeito a dirigir um julgamento, pois nem a correcta utilização das palavras é capaz de fazer. De seguida é apresentada a lei por ele inventada (“Artigo Quadragésimo segundo: Todas as pessoas com mais de quilómetro e meio de altura devem abandonar o tribunal”) com o propósito de excluir Alice da sala, é a prova de que o rei não estudou direito e por isso não tem noção do que está a fazer, e mesmo assim ninguém sem ser Alice arranja coragem para protestar, pois “crescera tanto nos últimos minutos, que não tinha medo nenhum de os interromper”. Aqui temos a prova de que nem sempre é fácil desprezar certos poderes ou características que possuímos, chegando mesmo a servir-nos disso para impor respeito, pois dentro de nós o poder aumentou, mas no fundo sempre foi o mesmo, e embora parta de nós, da nossa consciência, há certos atributos que nos fazem sentir melhor que este ou aquele, algo um pouco mau, mas que é uma realidade.
No fundo, todo o julgamento que é feito ao “valete de copas” (por supostamente ter roubado as tartes à rainha, visto que foi apenas acusado por puro prazer da nobreza), em tribunal é apenas uma maneira de fechar os olhos à população, para que esta tome como real a existência de justiça e igualdade, mas desde o inicio que a decisão estava tomada, só faltava um pouco de teatro perante a sociedade, para que no fim a sentença fosse lida. Como prova disto são as sucessivas acusações infundadas aquando a leitura da carta por parte do rei “ «Era verdade eu bem vi», isso é um testemunho evidentemente. «Se ela levasse isto p’rá frente» … deve ser a Rainha. «O que seria de ti?» Pois, pois, realmente o que seria? «Dei-lhe uma a ela, duas lhe deu» … ora isto deve ser o que ele fez às tartes, está visto… - Mas continua «Todas as dele te devolveu» - disse Alice. Então, pois, não estão ali? – perguntou o Rei triunfante, apontando para as tartes sobre a mesa. – Mais claro que isso não há. ”, ou qualquer uma das outras atitudes por ele tomadas e já aqui referidas.
A principal mensagem é o aproveitamento do medo e inferioridade por parte dos mais poderosos. O objectivo é a justiça, mas a palavra dominante é a injustiça. O objectivo é a verdade, mas o que prevalece é o poder. Será justo condenar alguém por ser mais desprotegido? A defesa é um direito que deve assistir a todos, e nada pode ser um obstáculo. Justiça é fazer com que todos permaneçam de igual para igual. Alguém que não comete qualquer injúria não pode ser condenada apenas pelo tamanho, classe social ou ausência de poder. O poder não pode influenciar uma decisão que pode mudar a vida de alguém. Imparcialidade e honestidade devem ser requisitos indispensáveis em alguém que está ou deve estar a trabalhar para o bom e justo funcionamento de toda uma sociedade. No dia em que a justiça não passar do direito de defesa e acusação por qualquer membro de uma sociedade, teremos um mundo melhor, e é isso que tenta mostrar Lewis Caroll na obra “Alice no País das Maravilhas”.

Catarina Cardoso

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