segunda-feira, 2 de maio de 2011

Abuso de Poder

Ao longo desta obra, os problemas com que as diversas personagens se deparam muitas vezes não são resolvidos da forma mais lógica, mas sim de acordo com que o mais forte quer. Os mais fortes, os “superiores”, os que estão no poder, são os que decidem pelos mais fracos, quer estes gostem quer não. Exemplos destas situações surgem por toda a obra, onde a justiça é aplicada de forma a agradar os que a aplicam e onde se nota o medo dos fracos perante os mais fortes. Quer seja por o opressor ser maior em termos de dimensão, quer seja pelo facto deste ter o poder, no fundo são estes que decidem. O medo é a sua forma de controlo e usam-no para forçar as pessoas a obedecerem.
Em Alice no País das Maravilhas há situações em que se verifica que os outros obedecem ao Rei e à Rainha ou a Alice por estes terem o poder ou por causa do seu tamanho (como mostra na página 60, em que a própria Alice reconhece que, ao aumentar de tamanho, assustaria todos os outros, pois seria vista como um perigo). Há outras situações semelhantes, como a da página 23, no poema do crocodilo. Neste poema, na segunda quadra, o crocodilo “ri de mansinho” com uma “risonha bocarra” enquanto “estende as suas garras a receber os peixinhos”, ou seja, ri-se da desgraça dos mais fracos enquanto se ri da sua fortuna e o que ganha à custa destes.
Este exemplo, contudo, não é o único e pode-se encontrar outro na página 35. Nesta parte, o Rato conta a Alice a razão pela qual odeia gatos e cães através duma história sobre o que lhe aconteceu. Fúria, uma cadela, acusou o Rato de injúria capital e queria levá-lo a julgamento, mas para tal julgamento acontecer seria preciso haver juízes e jurados. Solução? A cadela serviria como juíza e jurada e assim o julgamento poderia ter lugar… Mas isto não é justiça, mas sim mais um exemplo dessa injustiça. A cadela sendo mais forte e maior que o Rato, tem o poder total, e por isso controla todos os factores que vão influenciar o destino do Rato. Porque quer, porque pode e porque nada a impede. Tendo o poder, o Rato nada pode fazer a não ser contestar, porque independentemente da sua vontade, a escolha será sempre do mais forte.
A única razão pela qual os mais fracos obedecem aos mais fortes deve-se pura e simplesmente ao medo que têm do que lhes possa acontecer e tudo farão para que lhes seja poupada a vida, mesmo que isso implique serem desonestos. Na página 84, três jardineiros da Rainha mentem para não sofrerem as consequências de terem falhado na sua missão. Tinham como objectivo plantar uma roseira de rosas vermelhas a pedido da Rainha, mas por erro, plantaram uma roseira de rosas brancas. Para não sofrerem as consequências deste erro, pintam as rosas de vermelho na esperança de a Rainha não descobrir. Um erro é o suficiente para causar o pânico, porque devido a esse erro, a Rainha pode castigar os jardineiros. A mentira seria a única maneira de escaparem a um destino que poderia ser fatal. Na verdade, a Rainha só tinha uma maneira de resolver todos os problemas… Mandar cortar a cabeça de alguém. Prova de que o poder permite qualquer coisa. A Rainha pode aproveitar-se de quaisquer privilégios que acompanhem o poder. Só alguém com tanto ou mais poder que a Rainha é que a poderia contestar e ganhar numa “luta de poder” (como acontece quando o Rei permite que alguém que foi condenado à morte pela Rainha, seja ilibado, e quando a Alice cresce ao ponto de poder contestar a própria Rainha).
Esta solução da Rainha para todos os problemas é comprovada pela autora na página 92, quando o Rei se quer livrar do gato e pede à Rainha para o ajudar. Como sempre, a Rainha manda cortar a cabeça ao gato. Aliás é possível ver a frequência com que a Rainha manda executar alguém. O uso e abuso do poder, em qualquer altura. A Rainha fazia o que quisesse incluindo mandar matar todos os que se encontrassem ao pé dela, como se vê na página 94. A Rainha irritada com a situação do gato, ameaçou mandar matar todos, quer tivessem culpa ou não. Isto só serve para mostrar que a Rainha faz o que quer sem precisar de razões para tal. Aliás as pessoas que iriam ser executadas mostravam ansiedade, o que só prova que a Rainha era bem capaz de usar o seu poder para cumprir a sua “promessa”.
Mas com o poder vem a fome. A fome pelo poder. Os que têm o poder têm o controlo, mas querem sempre aumentar este mesmo poder e fazem questão de que se saiba, de forma a usarem o medo como meio de controlo. Página 111, o poema fala de um Mocho e de uma Pantera que iam comer uma empada. Contudo, a massa, o molho e o recheio são da Pantera e ao Mocho só lhe calha o prato e ainda assim conseguiu-o com sorte. Sendo a Pantera mais forte que o Mocho tem a hipótese de ficar com tudo e o Mocho tem de se contentar com pouco. Ainda fica com uma colher, supostamente por caridade, mas ainda assim é só uma forma de gozar com o mais fraco. A Pantera oferece uma colher como se de algo sagrado se tratasse, enquanto que aquilo de que o Mocho mais precisa, a comida, fica para a Pantera. Mas a fome do poder não acaba aqui, pois a Pantera não fica satisfeita com o que já tem e por isso decide comer o Mocho. Ou seja quando já tudo tirou ao Mocho, decide tirar-lhe a própria vida e nenhum obstáculo o impede. Razão? Porque quer e pode.
E como fazem o que querem, até podem saltar a parte do explicar a razão pela qual o fizeram, como acontece, por exemplo, na página 117. Mal começou o julgamento sobre quem teria roubado as tartes da Rainha, já o Rei queria saber o veredicto. Ainda só se sabia qual a acusação, mais nada, e já o Rei queria saber se o acusado era culpado ou não. Ele não precisava de ouvir nada para saber o que decidir, bastava saber o que queria fazer do suposto culpado.
Ainda assim o julgamento continua, mas quando recebem uma suposta prova, o Rei aproveita todas as oportunidades para culpar o acusado. Esta prova é um conjunto de versos dentro de um envelope, o qual o Rei afirma ser do acusado, mesmo sem provas de tal, nem uma assinatura, nem nada escrito no envelope, só o poema na folha. Ainda assim o Rei afirma que a carta é do acusado, e que se não está assinado, então é porque não tinha boas intenções. Para o Rei isto eram razões suficientes para o culpar.
O Rei, em vez de ler o poema todo e tentar percebê-lo, lê verso a verso de forma a arranjar mais “provas” com que o acusar, mesmo que este não tenha escrito o poema. O Rei já não precisava de mais provas, pelo que pediu que apresentassem o veredicto. Mas a Rainha queria primeiro a sentença e depois o veredicto (mais uma demonstração de que não eram necessárias nem provas nem razões para fazerem o que quisessem). Houve contudo contestação por parte de Alice. Mas como podia ela contestar a Rainha, se não possuía o poder? Fácil, Alice agora era muito mais forte que a própria Rainha. Ao longo do julgamento tinha crescido de tal forma que já era considerada gigante por quem se encontrava no tribunal. A Rainha mandou executar Alice, mas nada foi feito, porque a Rainha já não detinha o poder que pertencia agora a Alice. Alice metia mais medo do que a Rainha pelo facto de agora ter mais poder e mais força. Os servos da Rainha já não lhe obedeciam. Na verdade nunca lhe obedeceram por lealdade, mas sim por terem medo do que lhes podia acontecer. E agora, tinham mais medo de Alice.
O controlo do mais forte sobre o mais fraco não é uma questão de lealdade, nunca foi, nem uma questão de respeito, só medo, não existe mais nada. Só quando este medo deixa de existir é que o mais forte pode ser derrubado. Não tendo mais nada para controlar os fracos, o mais forte perde tudo e a ganância acaba por ser responsável pela sua queda. Quando Alice contesta, logo a seguir ofende os servos da Rainha dizendo que eles não passam de um baralho de cartas, não são nada comparados com ela. Sempre foi assim, os mais fortes pensam sempre que são mais que os outros, mas quando os supostos “inferiores” se fartam, quando chega ao ponto de ruptura, ultrapassam o medo e derrubam o poder, como derrubaram Alice quando esta pensou que era mais que eles. Juntaram-se e derrubaram-na.
Este livro, para além de um conto em si, é também uma metáfora. Uma metáfora que mostra a ilusão que se encontra mesmo à nossa frente ou então uma metáfora que representa o medo que temos de contestar o poder. Verifica-se claramente, durante toda esta obra, que o poder tira e tem o que quer, tudo para proveito próprio. Mas esta felicidade tem como consequência a desgraça dos mais fracos, que nada podem fazer a não ser contentar-se com o que lhes sobra ou então enfrentar as consequências. O medo, no entanto, é mais forte que alguns e impede-os de agir e tentar acabar com este abuso de poder.
Isto acontece na realidade, quer as pessoas reparem ou não. A única diferença é que quando reparam, o medo ou impossibilidade de fazerem algo impede-os de se oporem e tudo acaba por ficar na mesma. É este medo que controla o mundo e que é usado pelos detentores do poder.

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