O livro Memorial do Convento, de José Saramago, é um romance
cuja ação central decorre no início do século XVIII. Retrata a personalidade do
rei D. João V e narra também a vida de vários operários anónimos que
contribuíram na construção do Convento de Mafra. Entre esses operários estava Baltasar,
e o romance foca, entre outras coisas, o seu grande amor por Blimunda, mulher
dotada do poder da ecovisão (ver o interior das pessoas). Apesar de ser um
romance, apresentam-se na obra inúmeros aspectos que a tornam bastante complexa,
como a crítica à igreja e as noções de justiça, sacrifício, destino, entre
outros. O aspecto que vou apresentar, um dos principais da obra, é o sonho.
“Além da conversa das mulheres, são os sonhos que seguram o mundo na sua
órbita.” – Capítulo XVI do Memorial do Convento
Um sonho é um objetivo pessoal que temos na vida, um
objetivo para o futuro, pelo qual não devemos desistir, pois é aquilo que nos
permite transpor os nossos limites pessoais e alcançar algo que nunca
esperaríamos conseguir alcançar.
Na frase "são os sonhos que seguram o mundo na sua
órbita", bem como nas que a seguem, pode-se verificar que o autor
considera que os sonhos são a motivação de viver dos humanos, e se perdermos a
capacidade de sonhar não conseguimos viver.
Neste mesmo capítulo da obra, encontramos explícita a noção
de recompensa ligada aos sonhos; os homens “bons” sofrem ao longo da vida, e a
recompensa dos seus infortúnios é encontrada pelos sonhos, pois vai permitir
uma distanciação temporária da dor, e é nestes que os homens conseguem realmente
voar. Assim, podemos dizer que eles são até bastante importantes até para a
nossa saúde mental, como vemos no Memorial o caso de D. Maria Ana que pelo
sonho fugia da sua existência infeliz. A rainha, por causa do seu estatuto
social, era constantemente subjugada pelas responsabilidades e pelo próprio
marido, encontrando refúgio nos sonhos, os quais, apesar de lhe transmitirem um
sentimento de vergonha e culpa, permitiam-na expressar a sua revolta em relação
à situação em que vivia, concedendo-lhe um certo poder que a levava a ser algo
mais do que rainha – uma mulher com total independência para poder explorar a
sua sensualidade.
Os sonhos também têm a capacidade de influenciar não só os
sonhadores como outras pessoas. Aliás, ao longo do tempo, sonhos ambiciosos
como voar, navegar ou construir algo grandioso possibilitaram um progresso na
sociedade. E até mesmo os sonhos mais pequenos como ter um filho vão
desenvolvendo aos poucos o nosso mundo, tornando-o melhor ou por vezes pior.
Podemos por isso dizer, e até encontramos este tipo de
pensamento na obra, que o mundo está como está porque alguns um dia sonharam
que gostavam que fosse assim, e tiveram a vontade para o cumprir. Esta ideia é
marcante no Memorial do Convento,
como podemos ver por esta passagem que se segue:
“Esse gancho que tens
no braço não o inventaste tu, foi preciso que alguém tivesse a necessidade e a
ideia, que sem aquela esta não ocorre, juntasse o couro e o ferro, e também
estes navios que vês no rio, houve um tempo em que não tiveram velas, e outro
tempo foi o da invenção dos remos, outro o do leme, e, assim como o homem,
bicho da terra, se fez marinheiro por necessidade, por necessidade se fará
voador”
Como verificamos então, o sonho é um tópico central no Memorial do Convento, e é a partir deste
que se fazem as grandes construções da obra.
Por exemplo, o convento de Mafra nunca teria existido se o
rei D. João V não tivesse desejado ter filhos. E, para além de cumprir a sua promessa
a frei António, também a construção do convento é realizada pelo sonho egoísta
que o rei tem de se tornar um ser imortal. Assim, o sonho de um homem mudou a
vida de muitos outros para pior, pois em vez de se importar com o sofrimento e
o esforço sobre-humano que recai sobre aqueles que constroem o edifício, ou
pela despesa descomunal que o projecto envolve, só se preocupa em alimentar a
sua vaidade e sentido de grandeza. Os construtores do convento sofrem porque
não partilham o sonho com o rei, a obra encontra-se alienada à sua vontade.
Mas o sonho pode também ser criador de algo transcendental, se
a criação estiver ligada aos construtores pelo sonho, como é o caso da passarola.
Esta é, inicialmente, o sonho de um único homem, o Padre Bartolomeu de Gusmão,
mas acaba por ser partilhado por Baltasar, Blimunda e Domenico Scarlatti. Este sonho
vai-se concretizar através do voo da passarola, graças à conjugação harmoniosa
da ciência, trabalho artesanal, magia e arte musical com o empenho e vontade de
ter sucesso de todas as personagens intervenientes.
A passarola representa não só o sonho de voar mas também o
desejo de superar os limites humanos. Podemos então afirmar que esta, tal como
o convento, é a matéria que resulta do sonho humano e da vontade que estes têm
de se transcender.
Concluindo, o que o Memorial do Convento nos mostra é que o
sonho, para além de ser a base dos nossos mundos pessoais, é algo poderoso que,
quando bem aplicado, pode levar a uma elevação do sujeito a algo que o
ultrapassa. Podemos ter tudo para realizarmos o nosso sonho, mas o mais
importante é a vontade e fé para lutar por ele.
“ (...) só os pássaros voam, e os anjos, e os homens quando sonham” –
Baltasar (pg 63 do Memorial do Convento)