XVI – Quem me dera que a minha vida fosse um carro de bois
Quem me dera
que a minha vida fosse um carro de bois
Que vem a
chiar, manhaninha cedo, pela estrada,
E que para
de onde veio volta depois
Quase à
noitinha pela mesma estrada.
Eu não tinha
que ter esperanças — tinha só que ter rodas...
A minha
velhice não tinha rugas nem cabelo branco...
Quando eu já
não servia, tiravam-me as rodas
E eu ficava
virado e partido no fundo de um barranco.
Ou então
faziam de mim qualquer coisa diferente
E eu não
sabia nada do que de mim faziam...
Mas eu não
sou um carro, sou diferente
Mas em que
sou realmente diferente nunca me diriam.
Depois as
ervas vinham a crescer e encobriam-me todo…
Passavam as
árvores… e eu já nem era visto…
Comia-me a
terra… e eu que era ferro e madeira voltava ao seu lado
Ia direito
ao coração da terra como a alma p’ra Cristo.
No início deste poema, o sujeito
poético fala-nos sobre a existência rotineira dos carros de bois - passam todos
os dias pela mesma estrada, à mesma hora, e voltam sempre para de onde vieram -
dizendo que gostava de ter uma vida assim, com rotinas específicas, porque
estas trazem consigo um sentimento de paz, tranquilidade, estabilidade.
Diz-nos também que, como estes
objetos já cumprem o propósito que lhes foi designado, não precisaria de se
preocupar com os seus sonhos e esperanças, pois saberia qual o seu lugar no
mundo. Quando já não pudesse servir esse propósito seria dispensado, não teria
de envelhecer com angústia e poderia desaparecer do mundo sem dor.
No entanto, ao lermos os versos “Mas
eu não sou um carro, sou diferente/Mas em que sou realmente diferente nunca me
diriam”, apercebemo-nos de que se calhar a vida do poeta não é assim tão
distinta da dos carros de bois que ele descreveu. As características que marcam
a existência deste objeto (cumprir uma rotina, viver sem pensar, aceitar a
ordem natural das coisas, render-se ao destino, envelhecer sem angústia) são,
afinal, as mesmas que distinguem o sujeito poético dos restantes.
Assim, o objetivismo e o
sensacionismo que seria de esperar do poeta tornam o poema numa negação de si
mesmo pois, ao imaginar a sua vida como sendo algo diferente, ele contradiz os
seus ideais e separa-se da natureza. Isto é, até à última estrofe, a qual vai
servir como elemento de consolidação de tudo o que foi dito e feito
anteriormente.
No final há uma aceitação, o sujeito
poético volta a sofrer uma fusão de si mesmo com a natureza e tudo à sua volta.
Despersonificando-se, ele volta a fazer parte do seu mundo.
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