sábado, 16 de março de 2013

O Guardador de Rebanhos de Alberto Caeiro

XVI – Quem me dera que a minha vida fosse um carro de bois



Quem me dera que a minha vida fosse um carro de bois
Que vem a chiar, manhaninha cedo, pela estrada,
E que para de onde veio volta depois
Quase à noitinha pela mesma estrada.

Eu não tinha que ter esperanças — tinha só que ter rodas...
A minha velhice não tinha rugas nem cabelo branco...
Quando eu já não servia, tiravam-me as rodas
E eu ficava virado e partido no fundo de um barranco.

Ou então faziam de mim qualquer coisa diferente
E eu não sabia nada do que de mim faziam...
Mas eu não sou um carro, sou diferente
Mas em que sou realmente diferente nunca me diriam.

Depois as ervas vinham a crescer e encobriam-me todo…
Passavam as árvores… e eu já nem era visto…
Comia-me a terra… e eu que era ferro e madeira voltava ao seu lado
Ia direito ao coração da terra como a alma p’ra Cristo.




No início deste poema, o sujeito poético fala-nos sobre a existência rotineira dos carros de bois - passam todos os dias pela mesma estrada, à mesma hora, e voltam sempre para de onde vieram - dizendo que gostava de ter uma vida assim, com rotinas específicas, porque estas trazem consigo um sentimento de paz, tranquilidade, estabilidade.

Diz-nos também que, como estes objetos já cumprem o propósito que lhes foi designado, não precisaria de se preocupar com os seus sonhos e esperanças, pois saberia qual o seu lugar no mundo. Quando já não pudesse servir esse propósito seria dispensado, não teria de envelhecer com angústia e poderia desaparecer do mundo sem dor.

No entanto, ao lermos os versos “Mas eu não sou um carro, sou diferente/Mas em que sou realmente diferente nunca me diriam”, apercebemo-nos de que se calhar a vida do poeta não é assim tão distinta da dos carros de bois que ele descreveu. As características que marcam a existência deste objeto (cumprir uma rotina, viver sem pensar, aceitar a ordem natural das coisas, render-se ao destino, envelhecer sem angústia) são, afinal, as mesmas que distinguem o sujeito poético dos restantes.

Assim, o objetivismo e o sensacionismo que seria de esperar do poeta tornam o poema numa negação de si mesmo pois, ao imaginar a sua vida como sendo algo diferente, ele contradiz os seus ideais e separa-se da natureza. Isto é, até à última estrofe, a qual vai servir como elemento de consolidação de tudo o que foi dito e feito anteriormente.

No final há uma aceitação, o sujeito poético volta a sofrer uma fusão de si mesmo com a natureza e tudo à sua volta. Despersonificando-se, ele volta a fazer parte do seu mundo.

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