terça-feira, 12 de março de 2013

“O Guardador De Rebanhos” – I - Eu Nunca Guardei Rebanhos


 I - Eu Nunca Guardei Rebanhos

Eu nunca guardei rebanhos, 
Mas é como se os guardasse. 
Minha alma é como um pastor, 
Conhece o vento e o sol 
E anda pela mão das Estações 
A seguir e a olhar. 
Toda a paz da Natureza sem gente 
Vem sentar-se a meu lado. 
Mas eu fico triste como um pôr de sol 
Para a nossa imaginação, 
Quando esfria no fundo da planície 
E se sente a noite entrada 
Como uma borboleta pela janela. 
Mas a minha tristeza é sossego 
Porque é natural e justa 
E é o que deve estar na alma 
Quando já pensa que existe 
E as mãos colhem flores sem ela dar por isso. 

Como um ruído de chocalhos 
Para além da curva da estrada, 
Os meus pensamentos são contentes. 
Só tenho pena de saber que eles são contentes, 
Porque, se o não soubesse, 
Em vez de serem contentes e tristes, 
Seriam alegres e contentes. 

Pensar incomoda como andar à chuva 
Quando o vento cresce e parece que chove mais. 

Não tenho ambições nem desejos 
Ser poeta não é uma ambição minha 
É a minha maneira de estar sozinho. 

E se desejo às vezes 
Por imaginar, ser cordeirinho 
(Ou ser o rebanho todo 
Para andar espalhado por toda a encosta 
A ser muita cousa feliz ao mesmo tempo), 

É só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol, 
Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz 
E corre um silêncio pela erva fora. 

Quando me sento a escrever versos 
Ou, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos, 
Escrevo versos num papel que está no meu pensamento, 
Sinto um cajado nas mãos 
E vejo um recorte de mim 
No cimo dum outeiro, 
Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas idéias, 
Ou olhando para as minhas idéias e vendo o meu rebanho, 
E sorrindo vagamente como quem não compreende o que se diz 
E quer fingir que compreende. 

Saúdo todos os que me lerem, 
Tirando-lhes o chapéu largo 
Quando me vêem à minha porta 
Mal a diligência levanta no cimo do outeiro. 
Saúdo-os e desejo-lhes sol, 
E chuva, quando a chuva é precisa, 
E que as suas casas tenham 
Ao pé duma janela aberta 
Uma cadeira predileta 
Onde se sentem, lendo os meus versos. 
E ao lerem os meus versos pensem 
Que sou qualquer cousa natural — 
Por exemplo, a árvore antiga 
À sombra da qual quando crianças 
Se sentavam com um baque, cansados de brincar, 
E limpavam o suor da testa quente 
Com a manga do bibe riscado.


Caeiro surge-nos neste poema como um poeta da objetividade, do imediatismo das sensações como se pode ver quando diz “Toda a paz da natureza / Vem sentar-se ao meu lado”.
O poeta deseja que os seus versos levem os leitores a imagina-lo como uma coisa natural, como uma arvore, por exemplo, á sombra na qual se sentavam, quando crianças, cansados de brincar.
O poeta apresenta uma linha muito metafórica apresentando-se como sendo um pastor, de olhos ingénuos sempre abertos para as coisas: “Minha alma é como um pastor, /…E anda pela mão das estações/ A seguir e a olhar…/ E desejo às vezes ser um cordeirinho, ou ser o rebanho todo…”
Finalmente Caeiro apresenta-se como anti metafísico, negando a utilidade do pensamento como se pode observar dos versos 21-25.
O pensamento tem mesmo um valor negativo: se não pensasse os seus versos não teriam nada de tristeza, seriam apenas “Alegres e contentes”.
“Pensar incomoda como andar à chuva” Foi este incómodo de pensar que Fernando Pessoa nunca conseguiu evitar. Já se viu que a “dor de pensar” sempre o torturou, inventando muitas saídas para o drama do seu “eu” dividido entre o real e o imaginário, entre o ser e o não ser. A tentativa mais radical de fugir à dor foi esta de transferir a sua alma para um poeta pastoril que olha e sente o mundo com a simplicidade com que uma criança olha para uma flor.
A plena felicidade exige não só o olhar simples de uma criança, mas também a sua inconsciência, por isso o poeta não se consegue libertar da inteligência que tolda a simples alegria de viver.

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