O memorial do convento, um romance
histórico, social e espacial, articula o plano histórico e ficcional, de modo a
propor uma reflexão sobre comportamentos e sobre o mundo onde predomina a magia
do inexplicável, ideia que nos é desde logo apresentada com a epígrafe de
Marguerite Yourcenar:
"Sei que
caio no inexplicável, quando afirmo que a realidade, - esta noção tão flutuante
-, o conhecimento mais exacto possível dos seres é o nosso ponto de contacto, e
a nossa via de acesso às coisas que ultrapassam a realidade."
Isto é, as
vozes do narrador têm como meta a crítica aos tempos representados, mas
sobretudo ao presente que vive. Implicam um contacto entre as duas realidades,
de modo a compreender o que vai para além destas, o mundo em que vive.
Escolhi então
como tema da apresentação o papel do Padre Bartolomeu Lourenço, isto porque é
nesta personagem que se cruzam todos os conceitos, todas as críticas implícitas
no espírito da letra.
Símbolo das
novas ideias, causadoras de estranheza na sociedade, tornou-se alvo apetecido
da Inquisição, paralelamente à sua simbologia sonhadora, capaz de despertar a
vontade de transcender.
Carrega dentro
dele o título de estrangeirado, por ir aprender lá fora aquilo que em Portugal
é criticado, os novos conceitos. Título esse que está na base de uma crítica
aos portugueses por se apegarem demasiado à definição do homem como bicho da
terra, não tentando por isso o alargar dos horizontes.
Tem ainda a
seu cargo o estatuto de voador, isto porque é o único a desprender-se da ideia
geral de ser humano afirmando: "O homem primeiro tropeça, depois anda,
depois corre, um dia voará", o que remete para a ideia de sacrifício como
inerente à própria condição humana, constituindo metaforicamente uma
glorificação aqueles que aceitam o desafio como um modo de aprendizagem e lutam
até poder um dia atingir tudo o que sonharam. Deste modo, a personagem referida
reúne em si o espírito de sacrifício, pela aceitação do seu sonho por parte dos
outros, a vontade e a excentricidade, isto porque se deixa envolver demasiado
pela vontade, como podemos verificar no excerto seguinte:
“Pudesses tu ver a
nuvem fechada que dentro de ti está, ou de ti, ou de mim, pudesses tu vê-la e
saberias que é bem pouco uma nuvem do céu comparada com a nuvem que está dentro
do homem”
Esta ideia excêntrica
da vontade como motor da vida que deu origem à sua loucura.
Esta ideia de voador
permite ainda ao narrador estabelecer uma distinção entre a fé e a religião
como poder político, isto porque o padre apesar de crente e orador origina a
critica à crise de fé, pela sua perseguição, visto que na obra a religião é
vista a como o entretenimento dos poderosos, como meio de manterem a opinião e argumentação
do povo na obscuridade, utilizando algo a que todos eles se apegam como comando
do seu destino, assim, a religião em “O Memorial do Convento” é como que uma
partido politico e não um ideal de religação e união dos que partilham a fé.
A fé não implica dependência,
uma pessoa crente pode e deve questionar a condição do homem, porque a
realidade não se esgota nela mesma, esta é mais abstrata do que pensamos, o que
nos é transmitido através da personagem do padre.
Assim o narrador
vinca a complexidade e excentricidade desta personagem, como um ser fragmentário
e atormentado, algo explicito na seguinte passagem:
“Três,
se não quatro, vidas diferentes tem o padre Bartolomeu Lourenço, e uma só apenas
quando dorme, que mesmo sonhando diversamente não sabe destrinçar, acordado, se
no sonho foi o padre que sobe ao altar e diz canonicamente a missa, se o
académico tão estimado que vai incógnito el-rei ouvir-lhe a oração por trás do
reposteiro, no vão da porta, se o inventor da máquina de voar ou dos vários
modos de esgotar sem gente as naus que fazem água, se esse outro homem
conjunto, mordido de sustos e dúvidas, que é pregador na igreja, erudito na
academia, cortesão no paço, visionário e irmão de gente mecânica e plebeia em
S. Sebastião da Pedreira, e que torna ansiosamente ao sonho”
Esta personagem
constitui então o ponto de intersecção da narrativa visto que estabelece relações
com os dois mundos, a corte e o povo. É por isto também espelho daqueles que
apesar de se oporem às ideias do poder, apenas se encontram em contraponto a
este, visto que necessitam da sua cobertura para a concretização dos seus
sonhos.
Saramago encontra então,
nesta personagem o novo império, o futuro, onde é possível unir o conhecimento
dos poderosos e o trabalho do povo, um dos significados da passarola. Assim, a
loucura é também aplicada neste conceito, visto que pode significar a
impossibilidade de tal união o que é uma crítica à sociedade da época. A passarola
é então a harmonia entre o sonho e a sua realização porque viver é procurar a superação
de nós próprios.
Catarina Torrinha
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