Fernando
Pessoa foi talvez, o maior impulsionador do modernismo em Portugal. Pessoa
criou heterónimos, “uma pequena humanidade” do sujeito poético, dos quais se
destacam Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis. Cada uma destas
personagens emblemáticas possui temperamentos diferentes, personalidades
diferentes que resultam no desdobramento da individualidade do poeta (do
ortónimo) que tornar-se-á na essência dos heterónimos.
Ortónimo
(do grego orthos= autêntico, verdadeiro e ónimo= nome) designa a atribuição da
autoria a Fernando Pessoa enquanto utiliza o seu nome. Fernando Pessoa teve
sempre a necessidade de distinguir o ortónimo dos seus heterónimos: o seu eu,
que se insere neste agregado de personalidades completamente distintas que
chocam umas com as outras.
O
poema Abdicação é talvez o soneto
mais detalhado de toda a obra de Fernando Pessoa porque sabemos como foi
escrito e qual era o estado de espírito do poeta. Pessoa escreveu uma carta a
Mário Beirão (um grande amigo dele) e ele descreve
como, chegando a casa sentiu a proximidade de uma tempestade e e Fernando Pessoa tinha medo
de relâmpagos.
Meu querido Mário Beirão:
Deu-me um grande prazer a sua carta de 25, que há dias recebi. Tinha muita
pena, é certo, que v. não me tivesse escrito ainda, mas, como eu também lhe não
tinha escrito, não me cabia o direito objectivo de ter essa pena. O pior para
mim é que eu, por certo, sinto mais a falta de correspondência que v. Estou, quanto a companhia
espiritual e imediata, quase só, se não só em absoluto... Não sou das
pessoas menos acompanháveis por si próprias, mas ainda assim — e de vez em
quando aborreço-me de não andar senão comigo.
Por isto a sua carta, ainda que breve, me causou uma grande alegria.
Estou actualmente atravessando uma daquelas crises a que, quando se dão na
agricultura, se costuma chamar «crises de abundância».
Tenho a alma num estado de rapidez ideativa tão intenso que preciso fazer da
minha atenção um caderno de apontamentos, e, ainda assim, tantas são as folhas
que tenho a encher, que algumas se perdem, por elas serem tantas, e outras se
não podem ler depois, por com mais que muita pressa escritas. As ideias que
perco causam-me uma tortura imensa, sobrevivem-se nessa tortura, escuramente
outras. V. dificilmente imaginará que Rua do Arsenal, em matéria de movimento
tem sido a minha própria cabeça. Versos ingleses, portugueses, raciocínios,
temas, projectos, fragmentos de coisas que não sei como começam ou acabam,
relâmpagos de críticas, murmúrios de metafísicas... Toda uma literatura, meu
caro Mário, que vai da bruma — para a bruma — pela bruma...
Destaco de coisas psíquicas de que tenho sido o lugar, o seguinte fenómeno
que julgo curioso. V.
sabe, creio, que de várias fobias que tive guardo unicamente a assaz infantil
mas terrivelmente torturadora fobia das trovoadas. O outro dia o céu ameaçava
chuva e eu ia a caminho de casa e por tarde não havia carros. Afinal não houve
trovoada, mas esteve iminente e começou a chover — aqueles pingos graves,
quentes e espaçados — ia eu ainda a meio do caminho entre a Baixa e minha casa.
Atirei-me para casa com o andar mais próximo do correr que pude achar, com a
tortura mental que v. calcula, perturbadíssimo, confrangido eu todo. E neste
estado de espírito encontro-me a compor um soneto — acabei-o uns passos antes
de chegar ao portão de minha casa —, a compor um soneto de uma tristeza suave,
calma, que parece escrito por um crepúsculo de céu limpo. E o soneto é não só
calmo, mas também mais ligado e conexo que algumas coisas que tenho escrito. O
fenómeno curioso do desdobramento é coisa que habitualmente tenho, mas nunca o
tinha sentido neste grau de intensidade. Como prova do género calmo do soneto,
aqui lho transcrevo:
ABDICAÇÃO
Toma-me, ó noite eterna, nos teus
braços
E chama-me teu filho.
Eu sou um rei
Que voluntariamente abandonei
O meu trono de sonhos e cansaços.
Minha espada, pesada a braços lassos,
Em mãos viris e calmas entreguei;
E meu ceptro e coroa, — eu os deixei
Na antecâmara, feitos em pedaços.
Minha cota de malha, tão inútil
Minhas esporas, de um tinir tão
fútil,
Deixei-as pela fria escadaria.
Despi a realeza, corpo e alma,
E regressei à noite antiga e calma
Como a paisagem ao morrer do dia.
Dê saudades minhas ao Vila-Moura e escreva-me breve e o mais extensamente que puder.
Um grande abraço do seu dedicadíssimo
FERNANDO PESSOA
a) Fernando Pessoa encontra-se num
estado de aflição mas não deixa que a sua escrita seja afetada. Escreve um
poema sereno e calmo num ambiente tumultuoso e solitário. O “desdobramento” que
Pessoa menciona na carta, corresponde à separação do ortónimo e do
impulsionamento dos heterónimos, que eu já tinha referido anteriormente. No
final da carta o próprio Fernando Pessoa assina, garantido assim a sua autoria.
b) Abdicação é quando um
soberano (um rei) renuncia o seu poder e deixa de ter responsabilidade, por
exemplo, perante o seu País. Neste poema um Rei velho e cansado desiste, já não
tem ânimo de lutar, de resistir. Abdica voluntariamente do seu cargo porque já
não se sente capaz de continuar.
Nos dois primeiros versos
(“Toma-me, ó noite eterna, nos teus
braços E chama-me teu filho”), a noite eterna significa a morte. Este Rei, que
também pode ser considerado o próprio sujeito poético (pela presença do pronome
pessoal “me”) que abdica da vida e procura abrigo na morte, algo de calmo e
sereno em que não sente o abandono e a solidão que experienciou durante a sua
vida.
Na segunda estrofe do soneto,
o rei entrega três dos objetos mais simbólicos de um monarca que garantem o seu
poder: a sua espada, o seu cetro e a sua coroa. A espada simboliza a vitória
sobre os inimigos e simultaneamente a justiça punitiva. O cetro simboliza o
estado e a justiça e, a coroa foi sempre associada a alguém que possui poder,
legitimidade sendo assim alguém imortal que permanecerá na mente da humanidade
para todo o sempre. O monarca desprende-se do materialismo e cede ao fracasso
dos sonhos que nunca se realizaram.
Deixou para trás as vestimentas
de um cavaleiro nobre que agora, para ele, são inúteis. Já não têm de lutar por
nada (pois abdicou) logo não necessita de se defender.
Na última estrofe o rei já
não tem mais nada (“Despi a realeza, corpo e alma”) e o que lhe resta é a
solidão, o isolamento e a melancolia (sentimentos similares ao estado de
espírito do sujeito poético). Eu pensava que no final do poema Abdicação
pudesse haver um novo amanhã que trouxesse um rasgo de esperança (mesmo que insignificante)
tal como na terceira parte da Mensagem, o
Encoberto. Mas em Abdicação não existe esperança, apenas desespero. Já não
há mais nada a fazer a não ser ceder á noite eterna, à morte do seu reinado.